“Ferreira Leite – o terceiro líder do PSD em menos de um ano – anunciou que, consigo, o partido virou uma página. Pode ser que sim. Resta saber se foi uma página para a frente ou uma página para trás. Já muita gente, entretanto, discorreu sobre o partido repartido aos terços. Com o devido respeito pela sabedoria da tribo, talvez não seja esse o facto mais interessante destas directas do PSD. No sábado, houve mais eleitores a absterem-se do que a votar em qualquer dos candidatos. Dos 77.088 militantes com direito a voto no dia 30 de Maio, quase metade – 41% – renunciaram a escolher. E isto numas eleições em que era suposto os eleitores serem “militantes” e em que não faltavam razões aparentes de mobilização: havia mais do que uma candidatura com esperanças de ganhar, os candidatos exageraram as diferenças entre si, toda a gente dramatizou o que estava em causa (a própria existência do partido), e até houve dois debates televisivos. Mais do que “dividido”, o PSD parece desmotivado.
Para animar a eleição, opôs-se a “credibilidade” de Ferreira Leite ao “populismo” de Santana ou à “juventude” de Passos Coelho. Mas aparte uma ou outra opção avulsa (por exemplo, privatizar ou não a CGD), que distinguia programaticamente os candidatos? É verdade: Passos declarou-se “liberal”, e Ferreira Leite preferiu conservar-se “social-democrata”. Qual, porém, a diferença inultrapassável entre o “liberalismo” dele e a “social-democracia” dela? Ou entre essas duas coisas e o “populismo” atribuído a Santana? Todos desejaram menos Estado, e todos se preocuparam com as “questões sociais”. Tal como Menezes, Mendes e os demais líderes do PSD. Em suma, o que havia para escolher eram pessoas, com os respectivos estilos, imagens e amigos. Não era de modo nenhum uma escolha secundária, mas não motivou demasiado, nem produziu um resultado suficientemente decisivo. Com os votos distribuídos em três partes mais ou menos iguais, nenhum dos candidatos conseguiu dar aos outros razões para deixarem de andar por aí. Às primeiras dificuldades, regressará o ruído que acompanhou as lideranças de Mendes e de Menezes. Muito provavelmente, Ferreira Leite aguentará melhor do que Menezes – se não tiver uma “câmara de Lisboa”, como Mendes.
Há quem, como tratamento, recomende ao PSD a adopção urgente da fórmula política que anima as direitas europeias mais bem sucedidas: o PSD devia transformar-se num partido para os liberais e conservadores que estão à direita do PS. É uma óptima ideia, que só tem este problema: o PSD já é um partido de direita, para liberais e conservadores. Como votou a maioria dos deputados do PSD no caso da lei do aborto? Como teria votado a maioria dos conservadores. O que dizem os líderes do PSD sobre o papel do Estado? O que os liberais costumam dizer. E onde se situam os eleitores do PSD, quando sondados acerca da sua posição no leque político que vai da direita à esquerda? Segundo um estudo recente, muito mais à direita do que os do CDS. Porque é que então a classe dirigente do PSD insiste nas velhas máscaras e subterfúgios a que a direita portuguesa recorreu para sobreviver em 1975? Porque é que, mesmo quando confessa ser “liberal”, logo acrescenta nervosamente não ser de “direita” (Passos Coelho)?
Porque a classe dirigente do PSD tem uma estratégia muito singela: trata-se de herdar o governo à boleia da corrente “crise”, e depois utilizar o Estado para impor disciplina ao partido. A fim de chegarem ao poder, as outras direitas europeias têm andado a propor aos seus eleitorados visões do mundo e da sociedade alternativas à das esquerdas. Por isso, procuraram inspiração nas tradições conservadoras e liberais, e assumiram finalmente, onde isso já não era claro, uma identidade diferente da esquerda. Os donos do PSD, com poucas excepções, são demasiado espertos para se darem a esse trabalho ou correrem esses riscos. Pior: acreditam que, em Portugal, não vale a pena. O “povo” que conhecem é aquela clientela autárquica a quem, com a competente ironia, atiram “carne assada” nas festas do partido. Habituaram-se a imaginar os portugueses como uma massa provinciana e desesperada. Esperam por isso que, sem muito esforço da parte deles, a não ser o de porem caras muito sérias, de quem sabe tudo, este povo neo-realista venha a acreditar que basta substituir Sócrates por Ferreira Leite para os preços baixarem.
Ferreira Leite conseguiu dar pelo facto de os portugueses terem deixado de “respeitar” o PSD. Talvez as coisas mudem quando os donos do PSD começarem a respeitar os portugueses.”
“Uma página para a frente, duas para trás” de Rui Ramos no Público
Junho 4, 2008 por carlos sacramento
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