“A tolerância é uma das noções mais difíceis de compreender. Confunde-se geralmente com o relativismo epistémico e esta confusão denuncia incapacidade ou até falta de vontade para aceitar a tolerância. Os pensadores pós-modernistas são responsáveis por contaminar a cultura contemporânea com esta confusão grave, que acaba por tornar impossível a genuína tolerância.
Ser tolerante é aceitar o direito de alguém afirmar o que pensamos firmemente ser falso ou errado ou inaceitável ou ofensivo. Isto é de tal modo difícil de assimilar que os pensadores pós-modernistas se sentem na necessidade de declarar que não há “verdades”, mas apenas “construções sociais da realidade”. E, por causa disso, todas as diferentes “construções” são igualmente aceitáveis. Pensa-se então que esta atitude é tolerante, quando, ironicamente, torna impossível a tolerância. Pois se ninguém pode realmente estar errado nem dizer coisas falsas nem inaceitáveis, não podemos realmente ser tolerantes: limitamo-nos a aceitar todas as perspectivas que reconhecemos à partida serem tão aceitáveis como as nossas.
Pior: a falsa tolerância abre as portas ao fanatismo, cada vez mais presente na sociedade contemporânea. O fanatismo consiste em usar sistematicamente a noção de ofensa para silenciar os outros. Assiste-se assim à imposição de um discurso falsamente politicamente correcto, proibindo-se seja quem for de dizer seja o que for que possa ser ofensivo seja para quem for. Não se pode dizer que o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o judaísmo são basicamente tolices supersticiosas, porque isso é ofensivo. Não se pode dizer, como James Watson, que os negros são menos inteligentes do que os brancos. Não se pode fazer cartoons a gozar com Maomé. E, numa reviravolta digna dos Monthy Python, os docentes da Universidade de Roma La Sapienza declaram-se ofendidos com as opiniões do Papa sobre Galileu e os estudantes encenam protestos mediáticos análogos aos protestos contra os cartoons do Maomé.
A tolerância pressupõe a convicção do erro. Só podemos tolerar o que estamos convictos que é um erro inaceitável, uma falsidade patente, um absurdo ofensivo. Tolerar é tolerar humanamente. Não é tolerar epistemicamente, no sentido de defender que qualquer afirmação é igualmente justificável epistemicamente. Não é epistemicamente justificável a opinião de que o Holocausto não existiu ou que qualquer negro é menos inteligente do que qualquer branco ou que os seres humanos descendem de Adão e Eva. E é precisamente porque tais opiniões são claramente falsas, claramente injustificáveis, que podemos ser tolerantes relativamente a quem as defende. Ser tolerante é defender as pessoas que têm ideias falsas, idiotas ou inaceitáveis e atacar essas ideias; não é atacar as pessoas para evitar o incómodo de provar que as suas ideias são falsas. E, se tais ideias nos ofendem, paciência. Não é possível garantir a liberdade de expressão e ao mesmo tempo garantir que não seremos ofendidos.”
Archive for 14 de Março, 2008
“Tolerância e ofensa”, de Desidério Murcho
Posted in Filosofia, Sociedade on Março 14, 2008| Leave a Comment »
Mais irracionalismo ambiental
Posted in Ambiente, Filosofia on Março 14, 2008| 3 Comments »
2080 por Paulo Moura
“O conflito do Darfur, antes de qualquer outra razão, deve-se ao aquecimento global. A subida das temperaturas fez o deserto do Sara avançar. Tribos nómadas que conseguiam alimentar o seu gado na savana foram obrigadas a migrar para sul, em busca de novas pastagens. Mas nos novos territórios o equilíbrio entre gente e recursos já era precário. Os janjaweed, os movimentos rebeldes, os ataques governamentais contra as aldeias, os 200 mil mortos e os dois milhões de deslocados vêm depois, em consequência. Tudo isto faz do Darfur uma região mais moderna do que os EUA, a Europa ou o Japão. Uma região precursora do futuro.
O aquecimento global dará origem a um novo tipo de conflitos, por todo o mundo, dizem, num relatório, Javier Solana e Benit Ferrero-Waldner, o coordenador e a comissária da UE para a política externa.
Quebras na produção agrícola na Turquia, Iraque, Síria ou Arábia Saudita empurrarão esses países para a guerra. A crescente falta de água em Israel e no Médio Oriente acenderá ainda mais os conflitos na região. Os países pobres de África tornar-se-ão ainda mais pobres.
Ondas de novos imigrantes chegarão à Europa. “Imigrantes ambientais”, que fogem de zonas empobrecidas pelas mudanças climáticas. Há até quem se prepare para reclamar o estatuto de “refugiado ambiental”.
A tensão e o ressentimento entre o Norte e o Sul vão agravar-se, porque os países pobres do Sul serão as principais vítimas das alterações climáticas, enquanto os ricos do Norte são os principais causadores dessas alterações.
O degelo dos glaciares vai pôr a descoberto novas jazidas de recursos energéticos, e isso provocará rivalidade entre as potências. União Europeia e Rússia vão disputar os hidrocarbonetos do Árctico. O derretimento do gelo abrirá novas rotas comerciais que serão cobiçadas pelas potências.
A guerra pelo controlo dos escassos recursos da energia será tão vital que há quem tenha encontrado para a NATO uma nova vocação, depois da queda do comunismo: a segurança energética.
Será assim o mundo em 2080. Um mundo de ficção científica, um futuro de pesadelo, que nos deve fazer tremer.
É claro que o futuro, realmente, não existe. Porque nunca é como o imaginávamos. O que existe são territórios desconhecidos, aterradores, algures entre nós. Incursões do futuro no tempo presente. O Darfur, por exemplo, é um desses lugares do futuro. Com os seus campos de refugiados, as suas crianças a morrer de fome, os seus “demónios a cavalo”, é uma imagem de futuro que corresponde ao nosso tempo.
Cada momento tem o seu futuro próprio, que se vai tornando obsoleto. Observar, décadas mais tarde, essas representações do futuro é tão hilariante como ver as naves espaciais dos primeiros episódios do Star Trek.
Solana e Waldner não são videntes. Fazem futurologia apenas para nos fazer olhar em redor.
Em 1984, George Orwell não queria mostrar o mundo de 1984, mas o seu, de 1948.”
O aquecimento global dará origem a um novo tipo de conflitos, por todo o mundo, dizem, num relatório, Javier Solana e Benit Ferrero-Waldner, o coordenador e a comissária da UE para a política externa.
Quebras na produção agrícola na Turquia, Iraque, Síria ou Arábia Saudita empurrarão esses países para a guerra. A crescente falta de água em Israel e no Médio Oriente acenderá ainda mais os conflitos na região. Os países pobres de África tornar-se-ão ainda mais pobres.
Ondas de novos imigrantes chegarão à Europa. “Imigrantes ambientais”, que fogem de zonas empobrecidas pelas mudanças climáticas. Há até quem se prepare para reclamar o estatuto de “refugiado ambiental”.
A tensão e o ressentimento entre o Norte e o Sul vão agravar-se, porque os países pobres do Sul serão as principais vítimas das alterações climáticas, enquanto os ricos do Norte são os principais causadores dessas alterações.
O degelo dos glaciares vai pôr a descoberto novas jazidas de recursos energéticos, e isso provocará rivalidade entre as potências. União Europeia e Rússia vão disputar os hidrocarbonetos do Árctico. O derretimento do gelo abrirá novas rotas comerciais que serão cobiçadas pelas potências.
A guerra pelo controlo dos escassos recursos da energia será tão vital que há quem tenha encontrado para a NATO uma nova vocação, depois da queda do comunismo: a segurança energética.
Será assim o mundo em 2080. Um mundo de ficção científica, um futuro de pesadelo, que nos deve fazer tremer.
É claro que o futuro, realmente, não existe. Porque nunca é como o imaginávamos. O que existe são territórios desconhecidos, aterradores, algures entre nós. Incursões do futuro no tempo presente. O Darfur, por exemplo, é um desses lugares do futuro. Com os seus campos de refugiados, as suas crianças a morrer de fome, os seus “demónios a cavalo”, é uma imagem de futuro que corresponde ao nosso tempo.
Cada momento tem o seu futuro próprio, que se vai tornando obsoleto. Observar, décadas mais tarde, essas representações do futuro é tão hilariante como ver as naves espaciais dos primeiros episódios do Star Trek.
Solana e Waldner não são videntes. Fazem futurologia apenas para nos fazer olhar em redor.
Em 1984, George Orwell não queria mostrar o mundo de 1984, mas o seu, de 1948.”
fonte: http://jornal.publico.clix.pt/ .